Não raro há a veiculação da
dissociação entre a arrecadação dos governos e o retorno de bens e serviços
estatais. O intento, sistematicamente alardeado, é bem sucedido em formar a
opinião pública. Não é difícil de compreender a indignação gerada na população,
sobretudo frente ao desconhecimento dos parâmetros de carga tributária e da
precária informação das benfeitorias do Estado. O obscurecimento e a
naturalização das ações estatais permeiam o debate acerca da tributação. Os
salários dos parlamentares e os casos de corrupção selam uma visão bem
sedimentada, escamoteando as reais intenções da repetição de um mantra não
verdadeiro, mas hegemônico. Essa miragem transpassa e gera propositalmente uma
cegueira coletiva, que, além de inverídica, está carregada de ideologia e
atende a interesses específicos.
O Brasil é um país que oferece um sistema de saúde universal, desde a
constituição de 1988. O resultado disso pode ser observado nas taxas de
mortalidade infantil e na ampliação da expectativa de vida desde então. Somos
exemplo de vacinação e combate a doenças. Graças à ação do Estado a
esquistossomose, a cólera e a leptospirose não são epidemias. O Estado está na
luz dos postes, nas estradas, nos calçamentos, no transporte urbano, no
transporte aéreo, no recolhimento do lixo, na destinação do esgoto, na escola
pública (da pré-escola ao pós-doutorado), no policiamento, na defesa
territorial. Essa é a parte mais visível. Mas há também Estado na forma de
subsídios que garantem a energia elétrica, a produção de alimentos, o
investimento em conhecimento, a aquisição de imóveis e o avanço técnico. Há
Estado nas políticas de geração de emprego e de desenvolvimento econômico.
Ele está também na seguridade social, ou seja, nas aposentadorias, nas
pensões por morte, nos seguros de maternidade e de invalidez. O Estado permite
a mediação e o julgamento dos conflitos, a reclusão de malfeitores, além da
própria organização das regras que nos permitem viver de forma civilizada e não
no caos e na guerra como foi marcada a história humana. Não há um dia sequer
que qualquer cidadão não esbarre na ação do Estado e não se beneficie diversas
vezes dela.
A carga tributária brasileira gira em torno de 36%. O PIB de 2014 deve fechar
em, aproximadamente, R$ 5,155 trilhões. Isso significa que a renda per capita é
de R$ 25.389,00. Nessa medida, cada brasileiro paga, em média, R$ 761,00 em
impostos por mês para atender uma série de garantias legais e de reclamos
sociais. Embora seja possível aprimorar a eficiência e reduzir o
desperdício, para quem sabe fazer conta, salta aos olhos o óbvio: é um recurso escasso
para tudo o que exigimos dos governos.
Outro jargão de senso comum é que se não fosse a corrupção, os serviços
públicos seriam melhores. De acordo com a FIESP, o País perde R$ 100 bilhões em
corrupção. Ainda que esse dado não seja preciso e nem desprezível, representa
apenas 1,9% do PIB. Faz falta, mas não resolve. Em linha semelhante, o discurso
de senso comum alega que os impostos servem para pagar os salários dos
parlamentares. Não cabe defender o patrimonialismo e a exuberância do
congresso, de todo modo, o custo do parlamento brasileiro é de 0,19% do PIB. Já
todos os funcionários dos 39 ministérios custam 1,2% do PIB.
As comparações corriqueiras com outros países também ignoram os dados. Na
Noruega, por exemplo, a renda per capita é de US$ 100.818,00 e a carga
tributária de 44%. Dessa maneira, cada cidadão contribui, em média, com R$
8.800,00 mensais ao Estado. Ou seja, onze vezes mais do que o brasileiro. É
lógico e racional que seus serviços públicos sejam onze vezes melhores do que
os nossos.
Já nos Estados Unidos a carga tributária está em torno de 27%. Naquele país,
entretanto, não há sistema de saúde pública, não há ensino superior gratuito e
nem sistema de aposentadoria e pensões pelo Estado. O cidadão estadunidense que
não possui seus serviços privados está à margem.
Um dos papéis do Estado é melhorar a distribuição e permitir melhores
oportunidades a quem está na base da pirâmide social. Isso está ancorado na
compreensão teórica de que o mercado não é plenamente eficaz em permitir
oportunidades iguais a todos. Quanto se tem em conta que metade dos brasileiros
recebe até R$ 1.095,00 mensais, logo se conclui que milhões de pessoas não
teriam acesso algum à saúde e à educação não fosse o Estado. Ao se efetuar a
conta de onde efetivamente é gasto, constata-se que 71% da arrecadação
preenchem apenas três serviços: saúde, educação e previdência.
Cabe observar que a estrutura tributária brasileira está centrada no consumo e
na folha de salários, juntas essas rubricas respondem por 76,26% da arrecadação.
Já os impostos sobre propriedade perfazem 3,85% do total. Convém constatar
também que há segmentos da sociedade brasileira que têm índices de
desenvolvimento humano equivalentes ao norueguês e não precisam da saúde
pública e da educação pública, muito embora usufruam dessas nas cirurgias de
alta complexidade, nos transplantes, no ensino superior e nas bolsas de
pós-graduação.
Enxugar o Estado pode ameaçar a sustentabilidade de serviços basilares à vida e
à dignidade humana. Pode ameaçar o direito de quem não tem condições de pagar
por tais serviços e necessita da intervenção estatal para sua subsistência.
Esse tema abarca ainda a justiça social, cuja participação do Estado nos países
que lideram os índices de desenvolvimento humano é equivalente à brasileira ou
superior. Corrupção, parlamento e ministérios juntos representam 3,29% do PIB.
Esse recurso seria suficiente para melhorar substancialmente os serviços
públicos?
A retórica de que o cidadão paga impostos e não recebe serviços é astuciosa. Ela
vitimiza quem deveria contribuir mais para o bem estar social, como ocorre nos
países mais desenvolvidos. Os dados são claros e mostram que a elite
brasileira contribui menos em termos tributários do que seus congêneres na
maioria dos países do mundo. Ainda assim, querem reduzir o Estado. Quem vai
corrigir as distorções históricas de 388 anos de escravidão que viabilizou o
enriquecimento da elite brasileira? Como as raízes patriarcais serão
extirpadas? A quem interessa um Estado menor?
Róber Iturriet Avila - É Doutor em Economia, Pesquisador da Fundação de
Economia e Estatística (FEE) e professor da Universidade do Vale do Rio do
Sinos
Luís Felipe Gomes Larratea - Bacharel em Políticas Públicas e bolsista
FAPERGS/FEE
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Onde-esta-o-Estado-/7/32779
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