Os financiamentos
privados de campanha e os caminhos percorridos pelos políticos após o período
de eleições para fazer esse dinheiro retornar a seus donos voltaram a ser tema
de polêmica nos últimos dias. Tudo por causa do livro "O Nobre
Deputado", do juiz Márlon Reis, que aponta as práticas usadas por
políticos e, principalmente, deputados federais para, uma vez no poder,
contemplar seus financiadores com emendas de orçamento e licitações
irregulares, entre outras táticas.
Divulgado antes do
seu lançamento, o livro chamou a atenção do Congresso Nacional e o autor
tornou-se alvo de uma representação junto ao Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). Mas o episódio, mais que nunca, chama a atenção para a necessidade de
uma reforma política no país, como defendem sindicatos, movimentos sociais.
Ao comentar a
publicação na última semana, o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha, afirmou
que a casa deveria processar o autor e pedir reparação. A representação contra
Reis no CNJ diz respeito apenas à sua conduta como magistrado.
“Márlon Reis
achacou a honra de 513 deputados com suposições, como se todos fôssemos
responsáveis pela conduta de um parlamentar que não identifica quem seja”, ressaltou
o parlamentar fluminense, um dos maiores inimigos do Marco Civil da Internet
recentemente aprovado pela Câmara.
A mesma linha foi
adotada por vários deputados que criticaram o livro. “A publicação traz
acusações gravíssimas. Esse juiz não pode destruir a imagem do Parlamento dessa
forma”, disse o líder do DEM, o deputado pernambucano Mendonça Filho.
“Deveríamos pedir direito de resposta contra isso”, também reclamou Fernando
Ferro (PT-PE).
Márlon Reis é autor
do projeto de lei da Ficha Limpa e atualmente coordena o Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral (MCCE), que recolhe assinaturas para a apresentação ao
Congresso de um projeto de reforma política. O magistrado fez uma pesquisa para
sua tese de doutorado sobre as práticas dos candidatos durante as eleições. Os
resultados são apresentados neste trabalho.
Reis ouviu
parlamentares, assessores, coordenadores de campanhas eleitorais e
profissionais de marketing entre 2007 e 2013. Vasculhou detalhes sobre os
meandros das campanhas políticas e as formas de captação de recursos para
bancar uma vitória eleitoral – recursos que posteriormente costumam retornar
para as mãos dos que patrocinam os candidatos. No livro ele mostra, também, o
caminho do dinheiro de volta a seus donos.
As pesquisas
revelam condutas que se valem do atual sistema eleitoral para alcançar cargos
eletivos por meio do abuso do poder econômico e desvio de recursos públicos. Em
todas elas, o autor conta que solicitou aos entrevistados para não mencionarem
pessoas ou fatos reais, mas procedimentos rotineiros durante as campanhas.
Dentre alguns itens
citados por estas fontes são discriminados, como formas de abastecimento às
campanhas eleitorais, emendas parlamentares, convênios celebrados entre
governos e licitações fraudulentas. Num item do livro, o juiz aponta a
agiotagem como meio de arrecadação – segundo ele, pouco falado e muito
frequente no interior do país.
“As campanhas
eleitorais custam milhões de reais e o financiamento delas não costuma sair do
bolso de políticos honestos. Sai do caixa dois, sai das verbas de obras
públicas, sai das empreiteiras e sai das mãos de agiotas”, destaca, num dos
trechos da publicação. Em outro, o magistrado relata ter ouvido de vários
entrevistados que as empreiteiras colocam dinheiro nas campanhas, mas vinculam
esse financiamento à administração. “Se o cara ganhar a eleição, as obras
naquele governo todas terão de ser feitas pela empreiteira que emprestou o
dinheiro. Na verdade não é um empréstimo, é uma espécie de um investimento que
fazem.”
Já no item referente
ao processo de licitações dos governos, o juiz relata ter ouvido de um
coordenador de campanhas que esta é “a coisa que mais funciona hoje”. E seguem
explicações: “A maioria das licitações são organizadas pelas próprias empresas.
Lá o cara sabe quanto é que vai custar, quanto é que vai ter de sobrar e quem é
que vai ganhar. Para a lei está legal. Eles acertam de quanto é que vai ser a
licitação e antes de entrar para uma licitação eles já sabem quais são as
empresas que vão participar, qual é a forma de pagamento, qual é a forma do que
vai voltar”. Conforme o livro de Márlon Reis, as demais empresas também são
comunicadas e, dependendo da negociação que é feita, os contratos são
divididos.
Sobre como agem os
agiotas, Reis afirma também que estes profissionais emprestam dinheiro a
candidatos que tenham chances reais de ganhar as eleições. Para que sejam
bem-sucedidos em seus investimentos, chegam até mesmo a comprar pesquisas de
institutos de credibilidade para saber quem são os favoritos. A partir daí,
emprestam dinheiro, com o objetivo de compra de votos, mas com o compromisso de
receber o pagamento quando o candidato estiver na prefeitura.
“Normalmente, o
cara não tem dinheiro para bancar uma eleição e então o agiota oferece o
dinheiro e o candidato aceita. Se compromete a pagar integralmente aquele
dinheiro assim que ele estiver na prefeitura. O que ocorre é que o agiota cobra
juros altíssimos, e então o cara passa quatro anos pagando somente os juros e
nem consegue pagar o principal. Quando sai da prefeitura, ele tem de se
desfazer de bens para pagar ao agiota”, destaca um dos capítulos, onde o
magistrado afirma que o dinheiro termina saindo do setor público.
Embora pareçam
informações reveladoras, as declarações do livro não assustam jornalistas nem
analistas legislativos acostumados com as conversas trocadas nos bastidores da
Câmara e do Senado ou nos gabinetes parlamentares. Poucas vezes, porém, foram
explicitadas de forma tão clara. E, apesar das críticas, receberam declarações
de apoio por parte de vários profissionais.
“Reis é um
magistrado comprometido com a moralização das eleições, marcadas por abusos e
uso indevido dos meios de comunicação, em benefício de candidatos, inclusive,
com veiculação de pesquisas tendenciosas. Ele é o Montesquieu do mundo
contemporâneo por sua luta por um processo eleitoral sem corrupção”, frisou o
advogado Djalma Pinto.
“É uma obra que
tira a última máscara da velha política e com isso evidencia a necessidade de
uma mudança estrutural no Brasil”, completou o juiz Douglas de Melo Martins,
atualmente coordenador do programa de mutirões carcerários do CNJ.
“Temos duas questões
a serem observadas daqui por diante. Primeiro, saber como vão se comportar os
integrantes do colegiado do CNJ ao julgarem a conduta do magistrado, diante das
acusações dos deputados. E, em segundo lugar, avaliar a conduta dos próprios
deputados nas próximas eleições”, avaliou o cientista político Fernando
Santiago, para quem esse tipo de prática, está relacionado diretamente com a
falta de uma reforma política no país.
O trabalho foi
divulgado numa reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, que usou um ator
representando um personagem fictício, o deputado Cândido Peçanha, criado pelo
juiz para o livro. Na avaliação de muitos deputados, o personagem mostrou uma
visão generalizada dos parlamentares, dando a entender que todos agem da mesma
forma.
“Foi abuso e ataque
explícito ao parlamento por parte de um magistrado. É nosso dever fazer alguma
coisa”, bradou o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). “As
diversas alusões traduzem exercício impróprio do direito de informar sem
possibilitar o direito de defesa, vilipendiando a imagem do Congresso.”
“A intenção não foi
generalizar, mas mostrar como agem os parlamentares que adotam tais práticas”,
rebateu Reis. “Minhas críticas são dirigidas à parcela dos deputados que se
elege por meio do desvio de recursos públicos e do abuso do poder econômico,
não à Câmara dos Deputados como instituição central para a democracia”,
acentuou Márlon Reis, destacando que não tem receio de uma representação no
órgão de controle do Judiciário.
“Estou há mais de 17
anos na magistratura sem qualquer menção negativa nos meus apontamentos
funcionais. Como juiz só me pronuncio nos autos, mas como cidadão, professor,
autor de diversos livros e pesquisador acadêmico tenho e exerço o direito à
liberdade científica. Meu objetivo foi revelar como o poder transforma dinheiro
em poder.”