Cientista
social Glauber Piva elenca 20 pontos que ilustram as transformações do PT ao
longo dos anos e as atitudes do partido que culminaram em uma possível derrota
para o golpismo
1. Parte
do PT acabou. Uma parte importante, vistosa e vitoriosa do PT está sendo
mandada de volta para casa. Podemos denunciar o caráter golpista dessa derrota,
apontar as injustiças no comportamento da mídia e do Judiciário, a
ilegitimidade dos parlamentares que votaram contra Dilma ou denunciar às Cortes
Internacionais o arranjo antidemocrático que sustentará o governo Temer. Isso
tudo, ainda que correto, não anulará o fato de que parte do PT acabou.
2. O
petismo vai olhar para trás com um misto de saudades e desgosto – talvez toda a
esquerda brasileira já sinta saudades do que o PT representou para a política.
Ainda assim, os petistas e seus amigos carregarão nos próprios braços a
esperança de que o PT poderá renascer como alternativa de esquerda, legítima e
confiável para a reconstrução do Brasil, das bandeiras progressistas e de uma
política que combata a desigualdade histórica que nos habita.
3. Essa
parte do PT que acaba hoje não é todo o PT, nem todo o petismo. Há outro PT que
pode se impor: um PT ao mesmo tempo constrangido e corajoso, militante e
ambicioso. Para além do PT, há também uma esquerda que agora anoitece mais cedo
ainda que sem a certeza de como fará para que o amanhã desperte mais sano e
fértil.
4. O
Brasil sofreu um duro golpe. Não foi um golpe contra a Dilma ou contra o PT,
mas um golpe contra nossas esperanças e contra o povo pobre e trabalhador. Na
verdade, foram muitos golpes que apenas consumam uma etapa agora. Todos em
sequência, todos contra o povo, contra a democracia, contra o interesse
público. E é contra essa onda golpista que as forças populares continuarão
lutando.
5. O
golpe vai muito além da derrubada de Dilma. Tirá-la é parte de um movimento de
retomada do poder pelos grupos que sempre aparelharam o Estado contra as
periferias do Brasil. Dilma não cai por ser corrupta ou desonesta. Ela cai,
principalmente, por falta de talento para a política tradicional brasileira e
por não servir a interesses diversos – nem de esquerda, nem de direita.
6. Não é
à toa que, na sua maioria, quem foi à rua denunciar o golpe não defendia o
governo Dilma, mas, sim, a democracia, o respeito ao voto e denunciava o golpismo
evidente que alimentava o protocolo do impeachment. Se Dilma era inaceitável
para os conservadores, tampouco era atraente para os progressistas. Esse foi o
paradoxo que impediu que as reações fossem mais inteligentes, articuladas e
férteis.
7. Faltou
a Dilma e seu governo, ao PT e a seu governismo fazer o que é básico para a
esquerda: disputar visão de mundo, ser contra-hegemônico e fazer mudanças
estruturais que ampliem a democracia, a consciência de classe e combatam a
desigualdade. Neste período Lula/Dilma, houve combate à desigualdade, mas pouco
se fez para que a democracia fosse mais democrática e os trabalhadores tivessem
consciência da exploração que os alimentava.
8. Pode
parecer loucura, mas a parte do PT que se acaba é justamente aquela que foi
complacente com essa lógica golpista. Podemos falar do financiamento de
campanhas eleitorais que nos dragou para dentro da lógica privada; ou das
políticas de cultura no governo Dilma, sem utopias no primeiro mandato e sem
escala no segundo; ou do Minha Casa Minha Vida, tão exaltado por muitos, mas
que é, na verdade, um programa concebido por empreiteiras que não melhora a
vida nas cidades, ainda que atenda problemas reais das pessoas.
9. Grande
parte dos jovens brasileiros não conhece o PT que liderou as grandes
transformações do Brasil. Simplesmente porque nos últimos 13 anos nós nos
tornamos uma espécie de PMDB: no início, com charme. Aceitamos centenas de
milhares de filiações ao mesmo tempo em que desidratamos o debate político
profundo. De certa maneira, permitimos que o sindicalismo fosse nossa linha
auxiliar e não parte do que deveríamos ser. Nossas roupas foram perdendo o
cheiro das ruas ao mesmo tempo em que nossas palavras perdiam o brilho das boas
ideias.
10. O
governo Dilma acabou. Ao menos por enquanto, acabou. É verdade que o Senado
pode não confirmar o impedimento dela e, se isso acontecer, voltaremos ao
assunto. Por ora, o que temos é fim do governo Dilma e o fim da série petista
no Palácio do Planalto. Seguiremos resistindo, mas, até para isso, temos de
aceitar que hoje a vitória é deles.
11. Desde
o fim da ditadura, o Brasil elegeu quatro presidentes. Destes, dois tiveram
seus governos encerrados por decisão congressual: Collor e Dilma. Uns dirão que
é sinal do funcionamento das instituições, o que é muito questionável. Mas
todos nós podemos dizer que essa alta taxa de impeachment revela o
apodrecimento de nosso presidencialismo de coalizão.
12. O PT
não liderou o país na correção disso. Assim como Collor e FHC, Lula e Dilma
também tiveram de governar fazendo negociações no varejo, já que a eleição
presidencial não lhes garantiu a soberania de um programa político. Todos
negociaram e, quando não o fizeram – ou fizeram mal –, viram seus governos se
enfraquecerem. No caso de Collor e Dilma, enfraqueceram-se demais.
13. O PT
que atuou como criptonita contra o próprio PT, ou seja, contra aquilo que o
fazia ser o mais vivo, coerente e programático dos partidos brasileiros , é o
que se permitiu à cultura política dos pequenos negócios e, assim, se subordinou
à lógica do financiamento privado das eleições, das reeleições legislativas
indefinidas, das dezenas de partidos que nada representam, da burocracia
estéril que penaliza o povo simples, do serviço público que não serve tão bem,
da imobilidade urbana, da saúde que não atende, da educação que não acolhe.
Esse é o PT que está sofrendo impeachment. O PT que sofre impeachment é o que
colocou os interesses de governo à frente das lutas sociais, as eleições sobre
a democracia, a burocracia partidária acima da sua própria militância.
14. Se o
PT quiser seguir e recuperar sua importância para a política brasileira, para a
esquerda em geral e para o povo pobre do Brasil, terá de expurgar de si o PT
que o traiu.
15.
Graças às mulheres e homens que fizeram o PT ser o maior partido de esquerda do
Ocidente, esse PT impeachmado não é nem de perto todo o PT. A força dos
estudantes e trabalhadores na luta contra o golpe mostrou que o PT, em
particular, e as forças progressistas em geral, ainda têm energia e altivez para
fazer nossas bandeiras se comunicarem com as grandes causas do povo brasileiro.
16. Foi o
PT que colocou a desigualdade, a fome e a pobreza na pauta política do Brasil.
Foi o PT que negou a invisibilidade a milhões de brasileiros condenados à morte
pelo elitismo de nossas tradições. Foi o PT que liderou o país aos grandes
arranjos da política internacional. Mas isso tudo hoje está soterrado por uma
avalanche de erros, omissões e golpes. Para recuperar seu caminho, terá de
liderar uma grande renovação do próprio partido e ter nitidez e sanidade para
apontar os grandes problemas do país e propor soluções críveis, mobilizadoras e
renovadoras.
17. Não
perceber isso é sepultar todo o PT, inclusive o PT das ruas, dos movimentos
sociais, dos trabalhadores organizados, dos artistas e educadores semeadores de
utopias, dos intelectuais e religiosos que lutam diariamente contra o
mandonismo tradicional do Brasil. O PT precisa tirar o PT de si. Fazer isso é
se reconectar com a própria história e vocação e, principalmente, com as
grandes causas do nosso tempo.
18. Esse
anoitecer não durará para sempre. As mulheres e jovens têm sido as grandes
referências na luta contra esse jeito autoritário e violento de fazer política
no Brasil. Se queremos e podemos fazer uma nova política, teremos de olhar para
o que elas têm feito e parar de achar que o mundo é binário. Se as mulheres
conseguem cuidar sozinhas de suas casas, de seus casamentos, de seus vários
filhos e sonhos é porque aceitam que o afeto só transforma se vier temperado
com persistência e convicções. É essa esperança solidária partilhada também
pelos jovens que deve nos interessar.
19. Que
aqui ninguém ache que o impeachment de Dilma vai encerrar essa história.
Estamos todos cansados, mas o golpe não poderá prevalecer, mesmo que seu
governo acabe. O povo vai seguir nas ruas, ainda que os microfones da Globo
estejam nas bocas dos patrocinadores do Temer. Todos sabemos que sua ficha
(assim como a de tantos outros) é suja e vamos seguir exigindo que a justiça se
imponha: doa a quem doer. Mas a resistência terá de ser criativa, demonstrar
capacidade de diálogo, falar dos problemas reais da vida das pessoas e se
alicerçar numa proposta de Brasil no qual valha a pena acreditar.
20.
Nossos dias seguirão sendo alimentados por utopias. Contra nós, não haverá
golpe. Haverá luta. Pois nós sabemos que ninguém com uma caneta, um microfone
ou uma arma na mão pode ser mais inteligente ou poderoso que todos nós juntos.
* Glauber
Piva é mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), cientista social
(USP) e foi diretor da ANCINE (Agência Nacional do Cinema). Atualmente é
consultor internacional para políticas de comunicação e cultura.
http://www.revistaforum.com.br/2016/05/11/o-pt-sem-o-pt-o-dia-com-utopia/
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