A democracia se
consolida nos grandes processos bem conduzidos de inclusão social e política.
Em determinados
momentos da história, emergem novas forças políticas, inicialmente em estado
bruto, ganhando espaço com a radicalização do discurso contra o status quo.
Em todos os tempos,
as democracias passam por processos de estratificação nos quais os grupos que
chegaram antes ao poder levantam um conjunto amplo de obstáculos – políticos,
econômicos e legais – para impedir a ascensão dos que chegam depois.
Trava-se, então, uma
luta feroz, na qual os grupos emergentes radicalizam o discurso, enfrentam as
leis, as restrições e vão abrindo espaço na porrada.
É a entrada
definitiva no jogo político que disciplina essas forças, enriquece a política e
reduz os espaços de turbulência. Todos ganham. Rompe-se a inércia dos partidos
tradicionais, amaina-se o radicalismo dos emergentes; abre-se mais espaço para
a inclusão; permite-se uma rotatividade de poder que derruba a estratificação
anterior.
Sem essas lideranças,
as disputas políticas iniciais enveredam para o conflito permanente, deixando o
legado de nações conflagradas, como na Colômbia e no México.
Daí a importância
essencial dos líderes que unificam a ação, impedem a explosão das manadas e
montam estratégias factíveis de tomada do poder dentro das regras do jogo.
Acabam enfrentando
duas espécies de incompreensão. Dos adversários políticos, a desconfiança sobre
suas reais intenções, manobrando o receio que toda sociedade tem em relação ao
novo. Dos aliados, a crítica contra o que chamam de “acomodamento”, a troca do
sonho por ações pragmáticas.
Em seu estudo sobre
Mirabeau, Ortega y Gasset define bem o perfil do estadista e de outros personagens
clássicos da política: o pusilânime e o intelectual. O estadista só tem
compromisso com a mudança do Estado. É capaz de alianças com o diabo, desde que
permita a suprema ambição de mudar um país, um povo. Já o intelectual se vale
todos os argumentos do escrúpulo como álibi para a não ação.
Aliás, nada mais
cômodo que o niilismo de um Chico de Oliveira, do bom mocismo de Eduardo
Suplicy, dos homens que pairam acima dos conflitos, como Cristovam Buarque, dos
apenas moralistas, como Pedro Simon. Para não se exporem, não propõem nada, não
se comprometem com nada, a não ser com propostas genéricas de aprovação unânime
que demonstrem seus bons sentimentos, sua boa índole, sua integridade
intelectual – e que quase nunca resultam em mudanças essenciais.
As mudanças no PT
É por esse prisma que
deve ser analisada a atuação não apenas de Lula, mas de José Dirceu e José
Genoíno.
Ambos passaram pela
luta armada. Com a redemocratização, ingressaram na luta política e das ideias.
E ambos foram essenciais para a formação do novo partido e para a consolidação do
mito Lula.
Na formação do PT,
cada qual desempenhou função distinta.
José Genoíno sempre
foi o intelectual refinado. Durante um bom período dos anos 90 tornou-se um dos
mais influentes formadores de opinião do Congresso e do país, com suas análises
sobre regimento da Câmara, sobre reforma política, sobre defesa.
Já José Dirceu era o
“operador”, trabalhando pragmaticamente para unificar o PT em torno de um
projeto de tomada do poder e, a partir daí, de reformas.
A estratégia política
do PT passava por sua institucionalização, por um movimento em direção à
centro-esquerda, ocupando o espaço da socialdemocracia aberto pelo PSDB –
devido à guinada neoliberal conduzida por Fernando Henrique Cardoso e à
ausência de lideranças sindicais.
Não foi um desafio
fácil. O PT logrou juntar em torno de si uma multiplicidade de movimentos
sociais, a parte mais legítima do partido mas, ao mesmo tempo, a parte menos
talhada para a tomada de poder. Foram movimentos que surgiram à margem do jogo
político, desenvolvendo-se nos desvãos da sociedade civil e sem nenhuma vontade
de se sujar com a política tradicional.
Por outro lado, o
papel unificador de Lula o impedia de entrar em divididas. Tinha que ser
permanentemente o mediador.
O papel do operador
Dirceu
Sobrava para Dirceu o
papel pesado de mergulhar no barro. De um lado, com o enquadramento das
diversas tendências – o que fez com mão de ferro -, dando ao PT uma
homogeneidade que tirava o brilho inicial do partido, mas conferia eficiência
no jogo político tradicional trazendo-o para o centro.
E o jogo político
exigia muito mais do que enquadrar os grupos sociais do PT.
As barreiras eram
enormes. Passava por montar formas de financiamento eleitoral, pela aproximação
com o status quo econômico, pelos pactos com os grupos que atuam na
superestrutura do poder, com os operadores dos grandes interesses de Estado,
pelo mercado, pelo estamento militar, pela mídia.
Dirceu foi essencial
para essa transição, tanto para dentro como para fora.
Um retrato honesto
dele, mostrará a liderança inconteste sobre largas faixas do PT, o único a se
ombrear com Lula em influência interna e com uma visão do todo que o coloca a
léguas de distância de outros pensadores do partido.
Mas também era dono
de um voluntarismo até imprudente.
Lembro-me de uma conversa
com ele em 1994 em Brasília, com Lula liderando as pesquisas. Falava do projeto
popular do PT e do projeto de Nação das Forças Armadas, sugerindo um pacto não
muito democrático.
Não por outro motivo,
em diversas oportunidades Lula confessou que, se tivesse sido eleito em 1994,
teria quebrado a cara.
Com o tempo, o
voluntarismo foi sendo institucionalizado. Internamente, no governo, Dirceu
exercia uma pressão similar à de Sérgio Motta sobre FHC. Queria avançar mais,
queria menos cautela na política econômica, queria um projeto de
industrialização.
Sua grande obra de
arte política, nos subterrâneos do poder, no entanto, foi ter mapeado os elos
da superestrutura que garantia FHC e inserido o PT no jogo.
Esse mapeamento
resultou na viagem aos Estados Unidos, desarmando as desconfianças do
Departamento de Estado, dos empresários e da mídia; a ocupação de cargos-chave
no Estado, que facilitaram negociações políticas com grupos de influência. Nada
que não fosse empregado pelos partidos que já haviam chegado ao poder e que
precisaram garantir a governabilidade em um presidencialismo torto como o
nosso.
O veneno do excesso
de poder
Assim como Sérgio
Motta, no entanto, as demonstrações de excesso de poder tornaram-no alvo
preferencial da mídia.
Trata-se de uma regra
midiática clássica, que não foi seguida por ambos. Quando a mídia sente alguém
com superpoderes, torna-se um desafio derrubá-lo. Com exceção de ACM e José
Serra – a quem os grupos de mídia deviam favores essenciais e, em alguns casos,
a própria sobrevivência -, todos os políticos que exibiram musculatura
excessiva – de Fernando Collor ao próprio FHC (no período de deslumbramento),
de Sérgio Motta a José Dirceu - terminaram fuzilados.
No auge do poder de
Dirceu, creio que foi o Elio Gaspari quem o alertou para o excesso de exibição
de influência. Foi em vão.
O reinado terminou em
um episódio banal, a história dos R$ 3 mil de propina a um funcionário dos
Correios. Tratava-se de uma armação de Carlinhos Cachoeira com a
revista Veja, visando desalojar o grupo de Roberto Jefferson para
reabilitar os aliados de Cachoeira (http://bit.ly/19sMvtX).
O que era claramente
uma operação criminosa midiática, de repente transformou-se em um caso
político, por mero problema de comunicação. Roberto Jefferson julgou que a
denúncia tinha partido do “superpoderoso” Dirceu, para amainar sua fome por
cargos. E deu início ao episódio conhecido por “mensalão”.
E aí Dirceu – e o
próprio Genoíno – sentiram o que significa ter chegado tardiamente ao jogo
político, não dispor de “berço” e de blindagem contra as armadilhas
institucionais do Judiciário e da mídia.
A cara feia da elite
É uma armadilha
fatal. Para chegar ao poder, tem que se chegar de acordo com as regras
definidas por quem já é poder. Mas, sem ter sido poder, não se tem a mesma
blindagem dos poderosos “de berço”.
O episódio do
“mensalão” acabou explodindo, revelando – em toda sua extensão – a hipocrisia
política e jurídica brasileira, o uso seletivo das denúncias, o falso moralismo
do STF (Supremo Tribunal Federal).
Nos anos 40, Nelson
Rockefeller tinha um diagnóstico preciso sobre o subdesenvolvimento brasileiro:
havia a necessidade de um choque de modernidade, de criação de uma classe média
urbana que superasse o atraso ancestral das elites brasileiras, dominada pelo
pensamento de velhos coronéis.
Uma coisa é a leitura
fria dos livros de história, as análises de terceiros sobre a República Velha,
sobre o jogo político dos anos 30, 40, 50. Outra, é a exposição dos vícios
brasileiros em plena era da informação.
Para a historiografia
brasileira, o “mensalão” é um episódio definitivo, para entender a natureza de certa
elite brasileira, a maneira como o conservadorismo vai se impondo, amalgamando
candidatos a reformadores de poucas décadas atrás, transformando-os em cópias
do senador McCarthy. E não apenas no discurso antissocial e na exploração
primária ao anticomunismo mais tosco, mas na insensibilidade geral, de chutar
adversários caídos, de executar adversários moribundos no campo de batalha, de
abrir mão de qualquer gesto de grandeza.
Expõe, também, de
maneira definitiva as misérias do STF.
Aliás, Lula e o PT foram
punidos pela absoluta desconsideração pelo maior órgão jurídico brasileiro. Só
o desprezo pelo STF pode explicar a nomeação de magistrados do nível de Ayres
Britto, Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Dias Tofolli, somando-se aos inacreditáveis
Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello, à fragilidade de Rosa Weber e Carmen
Lucia e ao oportunismo de Celso de Mello.
O resultado final do
julgamento foi o acirramento da radicalização, o primado da vingança sobre a
justiça, a exposição do deslumbramento oportunista de Ministros sem respeito
pelo cargo.
No plano político,
sedimentam no PT a mística de Genoino e Dirceu.
Se deixam ou não o
jogo político, não se sabe. Mas, com sua prisão, fecha-se um ciclo que levou um
partido de base ao poder, institucionalizou um novo jogo político e, sem o
radicalismo dos sonhadores sem compromissos, permitiu mudar a face social do
país.
Não logrou criar um
projeto de Nação, como pensava Dirceu. Mas deixou sua contribuição para a luta
civilizatória nacional.
A democracia
brasileira deve muito a ambos.
por Luis Nassif — publicado 16/11/2013
18:43 – cartacapital.com.br
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