O gabinete do ódio resulta, em síntese, do brutal processo de inoculação do ódio na sociedade brasileira. O recurso atual ao ódio deriva da histórica postura antidemocrática das classes dominantes. Os muitos episódios de violência à esquerda, ao PT, demonstram os efeitos da fabricação cotidiana do ódio, durante anos.
Nada surpreendente as recentes revelações
jornalísticas, que têm vinculado o chamado gabinete do ódio ao Palácio do
Planalto. Tais conexões resultam coerentes com o longo processo de acionamento
e construção do ódio desenvolvido no Brasil desde, pelo menos, de 2005. Este
processo de 15 anos, como nunca, sedimentou o ódio no cenário político e, a
partir de 2019, instalou o ódio no cerne do governo federal. Emblemático
recorrer à expressão gabinete do ódio para designar o ponto de chegada do
fazimento, que viabilizou a extrema-direita ocupar o poder federal, com seu
culto ao ódio, estímulo à violência e projeto de implantar mais uma ditadura no
Brasil. Cabe tentar desvelar, mesmo parcialmente, a genealogia do mal.
O ódio não poder ser, infelizmente, desconsiderado
no cenário político nacional. O Brasil é uma sociedade perpassada pelo
autoritarismo estrutural, mesmo nos intitulados períodos democráticos. Tal
violência deriva de diversas raízes. Nelas possuem lugar de destaque: os quase
400 anos de brutal escravidão, que perfazem aproximadamente dois terços da vida
brasileira, e a enorme desigualdade social existente, associada ao passado
escravista, ainda vivo no Brasil. Apesar dessas tragédias sociais, nem sempre o
ódio aflorou de modo tão explícito, quanto no contexto atual. Ele, em outros
instantes, não ocupou o lugar de centralidade, que adquiriu nos tempos atuais.
Hoje o ódio passou a ser acionado quase sem limites. Ele transpassa o Brasil.
A presença escandalosa do ódio e as frágeis
limitações para sua utilização turvam completamente o que restou de ambiente
democrático no país, abalado, a ferro e fogo, pelo golpe
midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e pelas eleições não democráticas de
2018. O ódio transforma os adversários em inimigos. Em inimigos a serem
destruídos. O respeito à divergência de opiniões entre adversários políticos,
condição imprescindível para existir a democracia, está quase abolido. Em seu
lugar, a cena fica contaminada pela construção incessante de inimigos, a
destruir. Estão quase interditados a pluralidade, o confronto e o debate de
posições políticas diferenciadas. Ou seja, a vida democrática. As ameaças e
violências contra os que pensam, agem e são diferentes se tornam banais. O
assassinato de Marielle Franco no centro de uma das maiores metrópoles
brasileiras representa as muitas violências e mortes, que dilaceram a civilidade
e a República no país.
A democracia brasileira tem sido frágil e de baixa
densidade, devido ao autoritarismo estrutural, que a corrói, e a enorme
desigualdade social, que a corrompe, ao excluir parte significativa da
população dos direitos de cidadania. Ela,em muitos períodos, funciona como uma
democracia apenas formal, quase de fachada, sem possibilitar participação e
direitos para uma grande parcela do povo, quase sempre marginalizada da vida
nacional. Nas parcas oportunidades em que a democracia ameaçou se transformar
também em uma democracia mais substantiva, garantidora de direitos, as classes
dominantes não tiveram nenhum pudor de recorrer aos golpes, de variados tipos,
para destruir a débil democracia.
O recurso atual ao ódio como componente, nada
desprezível, do atual contexto nacional deriva dessa histórica postura
antidemocrática das classes dominantes. Ele não nasceu nas redes sociais, nem
nos setores da extrema-direita, como muitos querem fazer crer para se eximir de
suas responsabilidades. Por óbvio, já existia uma grande dose de ódio na
extrema-direita, pois o ódio é e sempre foi um traço imanente de sua própria
existência. Mas o ódio estava circunscrito aos membros dessa fracção e aos
nichos autoritários, que existem na sociedade brasileira. Esse ódio latente,
algumas vezes, era até rechaçado em público por entes políticos de centro e
mesmo de direita. Certa civilidade parecia possível na arena política desde o
final da ditadura civil-militar de 1964, ainda que a débil democracia conquistada
se apresentasse, em demasia, complacente com atos, ideias e gestos
autoritários, que traduziam ódio e violência.
A incapacidade política dos partidos de direita de
vencerem as eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014 levou tais segmentos mais uma
vez a abandonar qualquer compromisso com a democracia e apelar para atitudes
antidemocráticas, visando tomar o poder político federal. Apesar de recorrerem
ao ódio para agredir a democracia, os agentes políticos não foram os maiores
responsáveis por sua fabricação. O golpe de 2016 só foi possível de ser
construído pela intensa produção de ódio, desenvolvida desde 2005, por outros
segmentos da sociedade, além dos políticos, partidos e poderes, que se
mobilizaram para realizar o golpe contra a democracia.
O núcleo central da fabricação do ódio foi a grande
mídia, que de modo quase unânime, buscou inocular o veneno cotidiano na
população brasileira. A revista Veja, que em outros momentos primou pelo
jornalismo de qualidade, se transformou em um panfleto semanal regado a sangue.
Sua emblemática capa com a cabeça de Lula banhada em sangue sintetiza o
“jornalismo de campanha”, na expressão utilizada por Emiliano José, que tomou
conta e corrompeu a revista. A Rede Globo, por meio de sua potente audiência,
junto com o SBT, a Record, a Bandeirantes, O Estado de S. Paulo, a Folha
de S. Paulo, O Globo, a revista Época, a Isto É, a
rádio Jovem Pan e muitos outros órgãos da dita grande imprensa, participaram
ativamente da campanha de produção do ódio à esquerda e, em especial, aos petistas
e suas lideranças.
Para produzir tal ódio, esses veículos abandonaram
a discussão das políticas públicas, boas ou ruins, dos governos de esquerda,
como é papel do jornalismo em regimes democráticos. Em lugar do debate
fiscalizador das políticas públicas, eles entronizaram a corrupção como
principal e quase único problema nacional. O deslocamento da agenda política,
retirou de cena a discussão sobre as políticas públicas, em geral bem avaliadas
pela população, e colocou em foco o tema da corrupção.
Tal movimentação torna-se vital para reconfigurar
do cenário político, desfavorável aos partidos de centro e de direita, que se
mostravam incapazes de pôr em xeque as políticas públicas desenvolvidas, com
destaque para as ligadas à inclusão social. Assim, ficavam impossibilitados de
derrotar a esquerda e o PT de maneira democrática. A mudança do cenário emerge
como fator fundamental para a criação de outro ambiente para a disputa
política. Mais uma vez, a corrupção foi acionada no cenário brasileiro com objetivo
nitidamente político. A trajetória do uso instrumental do tema da corrupção
merece ser tratado em outro texto.
A associação construída, deliberada e
sistematicamente, entre PT, esquerda e corrupção, desde 2005, sedimentou em uma
parcela da população uma animosidade profunda contra a esquerda, os petistas e
suas lideranças, quando não um visceral ódio a eles. O jornalismo de campanha
da grande mídia escondeu a corrupção de muitos políticos e partidos, em
especial do PSDB, do mesmo modo que ocorreu com a Operação Lava Jato, e
demonizou, de maneira cotidiana, enfática e sistemática, a esquerda e os
petistas como responsáveis pelo maior esquema de corrupção já visto no Brasil.
Os muitos episódios de ódio explícito e de
violência à esquerda, ao PT, aos militantes e às lideranças petistas, com
destaque à Lula, em diversas ocasiões e cidades brasileiras, demonstram
cabalmente os efeitos da fabricação cotidiana do ódio, durante quinze longos
anos. Inúmeras pesquisas confirmam o abandono dos critérios basilares do
jornalismo e o caráter de mero ator político assumido pela grande mídia
brasileira. A ausência do efetivo exercício jornalístico e da pluralidade de
opiniões compromete, em profundidade, a vida democrática brasileira.
O ódio contaminou e polarizou a sociedade
brasileira como nunca. A convivência com a diversidade política até ali muitas
vezes possível no seio das famílias entrou colapso. O nível de radicalização
tornou inviável a convivência. O ódio dilacerou a civilidade e os episódios de
brutalidade e violência, física e simbólica, embriagaram o ambiente político,
degradando ainda mais a débil democracia brasileira, já intensamente
fragilizada desde o golpe de 2016.
Rememorar todo este processo, ainda em andamento,
torna-se essencial para revelar os responsáveis pela fabricação do clima de
ódio no atual cenário político nacional. Por óbvio, que a produção do ódio não
aconteceu como mera invenção sem algum substrato. A grande mídia inventou
notícias, que conseguiram mobilizar dimensões imanentes do autoritarismo
estrutural presentes na sociedade brasileira. Discriminações, preconceitos,
privilégios e violências de toda ordem foram acionados e estimulados pela
imprensa para desqualificar a esquerda e viabilizar a tomada antidemocrática do
poder federal. Hoje a grande mídia vocifera e quer responsabilizar as redes
sociais como usina responsável pela produção de fake news. Certamente, ela
deseja esconder suas responsabilidades como inauguradora nacional das notícias
falsas no país recente.
Um efeito perverso e imprevisto para os
responsáveis, na grande mídia, na política, nos poderes da República e no
empresariado pelo envenenamento cotidiano dos brasileiros pelo ódio, foi a
constituição de um cenário de animosidade tão antissistema da política, que
terminou atingindo inclusive os aliados de centro-direita, dos quais parte
significativa da grande mídia é servil porta-voz.
A dose cavalar de ódio inoculada na sociedade
atingiu tal patamar, que tornou o ambiente propício para entes mais
familiarizados com o ódio e a violência, permitindo a expansão da
extrema-direita na política nacional até ela chegar, por eleições não
democráticas, ao governo nacional. Com a extrema-direita do poder federal,
associada às milícias e aos fundamentalismos, a autorização plena está dada
para que o ódio e a violência, física e simbólica, invadam como nunca a vida
política brasileira.
O gabinete do ódio expressa e resulta, em síntese,
do brutal processo de inoculação do ódio na sociedade brasileira.
Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade
Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia
https://teoriaedebate.org.br/2020/08/04/odio-e-politica-no-brasil-atual/
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