Em breve acontecerão as eleições presidenciais na
Argentina, país, localizado no Sul da América do Sul. Lá, nos últimos 12 anos
as políticas públicas procuraram beneficiar os interesses da população mais
pobre e defender ações do estado do bem estar social e não do estado mínimo ou
neoliberal.
O povo argentino, como no futebol, que tanto incomoda
o Brasil, faz opções por candidaturas que representam possibilidades de
continuação das políticas que melhorarão as suas condições de vida,
A seguir leremos um texto interessantíssimo sobre a
situação eleitoral Argentina, que não é publicado na grande imprensa:
“Argentina: não tem mágica; é o Estado, hermano
Mote do
kirchnerismo nas eleições de 25 de outubro expõe diferença entre o governo e
seus opositores. É a política que conduz a economia; e para mudar a vida das
pessoas, o Estado tem de agir.
Os 12 anos de Kircherismo foram de forte contraste
com o neoliberalismo da era Menem e deixaram marcas.
“Não entendo muito de política, sou uma
trabalhadora.” As palavras da chilena Elizabeth del Carmen Calderón, de 61
anos, soam algo familiar. Muitas pessoas se mostram avessas a comentar
política. Mas basta esticar a conversa para perceber que elas sabem, sim,
reconhecer o que querem para elas e o que não querem. Bety vive na Patagônia
argentina desde a década de 1970. Casou-se, teve três filhos e se dedicou ao
trabalho em casas de família. “Passamos momentos difíceis, criei meus filhos
dentro do possível e hoje desfruto minha aposentadoria e meus netos”, diz. Puxa
na memória momentos difíceis dessas quatro décadas e compara com o momento
político decisivo do país.
“O segredo da presidenta Cristina Kirchner é ser
uma mulher segura, trabalhar bastante, cuidar de sua saúde, dedicar-se ao
conhecimento e ser honesta”, define, ao explicar o favoritismo do candidato
Daniel Scioli – apoiado por Cristina – na eleição presidencial de 25 de
outubro. Radicada no país, Bety está entre os cerca de 32 milhões de pessoas
que vão às urnas. O sistema eleitoral argentino prevê, antes da votação
decisiva, as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso). A primária
foi adotada após uma reforma eleitoral em 2009. Participam da eleição geral
candidatos que tenham alcançado pelo menos 1,5% dos votos na primária.
Pelo filtro das prévias de 9 de agosto passou em
primeiro Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires. O candidato da
Frente para a Vitória (FpV) alcançou 8,5 milhões de votos (38,5%). Em segundo
ficou Mauricio Macri, prefeito da cidade de Buenos Aires e ex-presidente do
Clube Atlético Boca Juniors, apoiado pelas principais forças de oposição ao
atual governo. A coligação Cambiemos obteve 5,4 milhões de votos para Macri e
1,3 milhão para os outros dois candidatos, somando 30,1% do total.
Se as eleições oficiais fossem naquele dia, Scioli
ficaria a apenas 1,5 ponto percentual de liquidar a fatura em turno único,
direito conferido ao mais votado que abre 10 pontos percentuais sobre o segundo
colocado. A chapa Unidos por uma Nova Argentina (UNA), do ex-deputado
kichnerista Sergio Massa, em terceiro com 20% da totalização, pode ser o fiel
da balança neste outubro – ou em 22 de novembro, se houver segundo turno.
Qualquer que seja o vencedor, dará início a uma nova fase, depois de 12 anos de
Néstor e Cristina Kirchner. Cristina assumiu depois da morte do marido, em
2007. Néstor havia chegado à Casa Rosada em 2003, inaugurando um novo período
de estabilidade política e econômica. O resultado favorável nas Paso confere
legitimidade à hipótese de vitória de Scioli em primeiro turno.
Legado pós-neoliberal
O cientista político e professor da Universidade de
Buenos Aires (UBA) Sergio De Piero, de 46 anos, acredita que a votação que
faltou ao candidato oficial não é um objetivo muito difícil, mas que somente o
início de outubro trará elementos para uma compreensão exata do cenário. De
Piero explica que os problemas com a inflação e outros próprios de 12 anos de
uma mesma força no governo poderiam fazer crer que a FpV teria mais
dificuldades eleitorais. “O fato, entretanto, é que nunca se registrou um
crescimento notável dos candidatos da oposição. E quando começou mesmo a
campanha eleitoral os atuais ocupantes da Casa Rosada demonstraram
superioridade sobre a agenda política. Os temas que a sociedade mais discute
são os que o oficialismo tem proposto”, avalia o cientista.
O professor de Filosofia Miguel Núñez Cortés, de 73
anos, tem visão semelhante. Cortés começou a militância sindical aos 17 anos,
na Unión Obrera Metalúrgica (UOM) e teve atuação sabotada pelos golpes de
Estado de 1966 e de 1976. Atualmente, leciona na Universidade Del Salvador
(Usal), a mais antiga instituição privada do país. Segundo ele, o cenário se
tornou mais favorável ao kirchnerismo quando ficou visível o projeto de mudança
levado a cabo pelo atual governo, em vultoso contraste com o discurso da
oposição. Por mudança, neste caso, assinala o professor, entenda-se o
rompimento com o pensamento neoliberal que levou o país a “condições trágicas”.
A era de Carlos Menem começou em 1989 com promessas
de prosperidade. Menem ancorou o peso ao dólar, como um dos alicerces de
combate à hiperinflação – qualquer semelhança com o que o Brasil faria cinco
anos depois não seria coincidência. A paridade causou na classe média a
sensação de poder aquisitivo forte. Atraiu monstruoso investimento estrangeiro,
em meio a um radical programa de reforma do Estado e de privatizações de
serviços públicos, da saúde às aposentadorias, das companhias de petróleo e gás
às ferrovias, dos correios à telefonia, da geração e distribuição de energia à
água. A presença do capital externo privado ajudou no controle da inflação num
primeiro momento. Mas a economia dolarizada não teve lastro para não afundar
após as crises do México, da Ásia e da Rússia. O país destruiu sua força
produtiva e os preços mais altos da aventura neoliberal foram pagos pela
população, com desemprego acima de 20% e empobrecimento brutal.
Aos 36 anos, Pablo Urra, filho caçula de dona Bety,
firmou-se na atividade de tatuador. E carrega discurso mais engajado no trato
da política. “A diferença entre os últimos governos e as alternativas liberais
é clara. Ficou demonstrado que os lucros não são importantes para serviços e
bens públicos. Este governo recuperou empresas nacionais, criou novos serviços,
investe nos estudantes. Há uma melhora notória”, acredita. Pablo conta que seus
sobrinhos receberam na escola pequenos computadores, ferramenta de inserção
social e ao mundo da informação. E enfatiza: “Anos de conquistas dos
trabalhadores foram destruídos em poucos meses pelo neoliberalismo. Carlos
Menem cavou a fossa e o (Fernando) De La Rúa nos enterrou”, lembra,
referindo-se ao sucessor de Menem, que renunciaria dois anos depois, em dezembro
de 2001.
O sobrinho de Pablo, Hernan Urra, de 18 anos, tem
uma bolsa mensal do governo para se dedicar ao esporte paraolímpico. Viaja uma
vez por mês mais de mil quilômetros desde a cidade natal, Cinco Saltos, na
província de Rio Negro, até a capital argentina, onde treina no Centro Nacional
de Alto Rendimento Desportivo. Já conquistou medalhas nacionais e
internacionais. “Se não houvesse esse estímulo, seriam muitos talentos como o
dele desperdiçados”, garante o tio, saindo da densa análise política para o
arroz-com-feijão.
Investimentos na malha
ferroviária, regulação das comunicações contra o oligopólio, controle de preços
da cesta básica, valorização das aposentadorias, campanhas de vacinação.
Kirchnerismo não descuidou da infraestrutura nem do social.
Papel do Estado
“Não foi mágica”, chancelam as propagandas
governamentais. Segundo Miguel Cortés, essas são palavras significativas. “Isso
coloca o preto no branco, chama à consciência e à memória. A oposição, em uma
cegueira política, responde aos interesses internacionais, entre eles os fundos
abutres”, avalia. “A população não é boba e tem memória.”
O professor de Filosofia observa ainda a
longevidade da combinação de avanços sociais com estabilidade institucional.
Para ele, economia estável, distribuição de renda e consolidação democrática
são faces bem-sucedidas de um mesmo projeto. “O modelo eleitoral, que inclui as
Paso, é uma demonstração disso. A celebração de acordos coletivos de trabalho e
sindicalização (CCT) – foram mais de 1.500 ante 200 há 12 anos – também. A valorização
do salário mínimo em mais de 1.300%, idem”, diz. “A recuperação dos fundos dos
aposentados e pensionistas se viu reafirmada quando se decidiu restaurar a
administração dos recursos dos trabalhadores que estavam em mãos do setor
privado.”
O noticiário transpira o ambiente eleitoral. A
mídia portenha mergulha na disputa. Há denúncias, críticas ou exaltação a favor
ou contra qualquer candidato, de acordo com a afinidade editorial do grupo de
comunicação. Miguel Cortés não estranha que os grandes grupos de comunicação
procurem desconstruir o peronismo em sua faceta atual e dominante, o
kirchnerismo, e se alinhe com “as correntes neoliberais que assolam o mundo”.
Para ele, esse “oposicionismo onipresente no que ainda chamam de jornalismo” é
que faz com que a vantagem da candidatura oficial não seja maior e mantenha a
imprevisibilidade do que sairá das urnas.
Mais consumidor do que analista de notícias, Pablo
Urra receia que “os meios dominantes”, no momento decisivo das eleições,
convençam muita gente. “Nunca vi tanta falta de respeito a uma figura
presidencial, como fazem com Cristina Kirchner. Boa parte da população ainda é
muito vulnerável. Escrachos e acusações pessoais aos membros da Casa Rosada são
constantes, inclusive feitos por profissionais da imprensa. Mas eles mesmos
acabam sendo alvo de processos judiciais e desmentidos – em algumas situações,
em menos de 24 horas.” Segundo Pablo, a oposição consegue propagar discursos
“cruéis” com objetivo de dividir a população entre “os que merecem e os que não
merecem” políticas públicas.
Técnico administrativo da Universidade Nacional de
Mar Del Plata, Gabriel Alberto Esain concorda com o poder de fogo da aliança
imprensa-oposição, mas o minimiza. “Houve um nível de mudança favorável, dado
pela veemência fraudulenta posta em agredir o oficialismo. Só que a realidade
superou a ficção”, acredita.
A população assume também o papel de comunicadora
ao ocupar as ruas com cartazes, pinturas e mensagens de diferentes teores. E se
coloca como contraponto para identificar questões sociais que não estejam na
pauta midiática. O governo de Cristina Kirchner captou essa demanda e
estrategicamente estreitou a proximidade com os grupos sociais críticos ao
neoliberalismo, como aponta Miguel Cortés. “Simplesmente se iniciou uma
campanha de difusão do que o governo estava fazendo, como testemunho de uma
tarefa ocultada pelos meios de comunicação hegemônicos.”
Pablo Urra é categórico: não se deve dar o braço a
torcer. “O modelo que temos hoje não necessita ser destruído, e isso está
evidente que o fará Macri. Ele é um privatizador compulsivo e isso não é
teoria, basta olhar a capital argentina.” O filho de dona Bety resume como a
era Menem se refletiu em sua vida. “A destruição da minha família se deu nos
anos 1990. Meu pai perdeu o trabalho, perdemos a casa e tudo conspirou para a
separação dos meus pais”, lembra. Fazem parte dessa época o abandono dos
estudos e o início de atividades alternativas para garantir seu sustento, como
desenhar, pintar, tocar pistão. “Trabalho desde os 14 anos. Acredito que hoje
um garoto dessa idade tenha melhores oportunidades do que as que eu tive, sem
precisar se sacrificar. Só pude voltar a estudar em 2001, numa universidade
privada”, conta Pablo.
Miguel Cortés vê em seu país uma completa ausência
de qualidade política entre os que assumiram o lugar de opositores. E, para
ele, a oposição jamais vai carecer de um projeto político, uma vez que se
sustenta sob o discurso predominante no mundo neoliberal, tendo sua faceta mais
visível na Europa. “Mas outra coisa é como mostram o que vendem. Aí está
radicada sua falha: a inabilidade política, apesar do extraordinário respaldo
interno e externo que recebe.” Gabriel Esain também não acredita que falte
projeto por parte da oposição. “O que existe é um projeto que não seduz o povo,
e por isso a oposição prefere nem apresentá-lo.”
O cientista político Sergio De Piero acrescenta que
a incapacidade da oposição de inserir novos temas para o debate chega a
facilitar a campanha da Frente para a Vitória. “Todos os candidatos têm
defendido maior presença do Estado, inclusive na empresa petroleira; expressam
concordância com a Casa Rosada em relação a políticas sociais voltadas a
setores mais pobres etc. Falam, finalmente, mais de continuidade do que de
mudança, exceto quando estão em conferências fechadas a seus grupos, onde aí
sim se referem a ajustes.”
Fito, da CTA: “Na Argentina, como
no Brasil, temos de potencializar a vida democrática com o voto e no cotidiano”
O pulo do gato
O secretário de Relações Internacionais da Central
de Trabalhadores da Argentina (CTA), Adolfo Aguirre, valoriza os avanços
sociais em seu país, mas pondera: “Ainda existem muitos níveis de pobreza e
muita gente sem acesso a direitos fundamentais, como habitação digna, saúde e
educação públicas e gratuitas que precisam expandir”. O sindicalista acredita
também que o próprio governo divide as organizações sindicais no país, por não
respeitar as decisões dos trabalhadores sobre como se organizar. Ele
considera, entretanto, que o sistema democrático é o espaço mais apropriado
para se avançar nas demandas do mundo do trabalho. “Estamos vivendo o período
mais longo de democracia no nosso país. E isso significa que reafirmamos a
importância do voto popular para melhorar as condições de quem busca trabalho,
de quem trabalha e de quem já trabalhou. Os trabalhadores protagonizaram a
construção da democracia”, defende.
Fito, como é conhecido, ressalta ainda que a CTA
apresentou aos candidatos as demandas dos trabalhadores para os próximos anos,
e que não têm relação apenas com o sistema laboral, mas com a qualidade de vida
das pessoas. “A Argentina é um país rico e tem grande importância no Cone Sul,
assim como o Brasil. Temos de potencializar a vida democrática tanto com o voto
como no cotidiano”, explica, defendendo o diálogo entre governos e atores sociais
como prática imprescindível para a definição de um ambiente pós-neoliberal
sustentável política, social e economicamente. A central enfatiza a necessidade
de se avançar na integração do continente, para além do Mercosul. “Não adianta
ganhar reconhecimento internacional sobre possíveis mudanças no modo de como
pagar as dívidas, porque não é justo que o povo pague dívidas imorais e
ilegítimas”, diz.
Miguel Cortés acredita que esse entendimento está
presente no kirchnerismo. “Enquanto o mundo ocidental seguia na direção de sua
autodestruição social e política, a Argentina, pela voz de Cristina Kirchner,
viu no G20 a necessidade de consolidar o nosso mercado interno”, explica. “Para
isso, criou fundos contracíclicos e apoiou de imediato as pequenas e médias
empresas, como garantia de oferta de mão de obra, com salários orientados a
proporcionar uma vida digna às famílias dos trabalhadores e à classe média nas
áreas de serviço e intermediação produtiva.” Cortés diz ainda que, como parte
desta estratégia, foi impulsionada uma maior participação de bancos privados na
concessão de crédito a essas empresas que quisessem investir e a pessoas
físicas. “A política industrial propiciou tanto a fabricação de materiais e
ferramentas quanto a necessidade de mão de obra intensiva e especializada”,
avalia.
O professor menciona, nessa direção, a recente
aprovação pela Organização das Nações Unidas (ONU) de uma iniciativa proposta
pela Argentina a partir da guerra com os fundos abutres, que operaram para
inviabilizar um acordo de refinaciamento da dívida pública e carimbar no país o
rótulo de caloteiro – o que num mundo dominado pelo sistema financeiro e as
agências de classificação de risco poderia arrasar qualquer política de
investimentos. “Os fundos converteram o país em referência na luta contra a
financeirização imposta pelos centros mundiais de poder hegemônico”, diz.
Resolução aprovada pela ONU estabeleceu princípios
básicos para guiar a reestruturação de dívidas soberanas, resultado de mais de
um ano de atuação diplomática. Ainda no campo da política externa, Cortés cita
como “histórica” a liderança dos governos pós-neoliberais do continente na
criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), surgida de maneira
incipiente desde a década passada, e que em dezembro do ano passado inaugurou
sua sede em Quito, no Equador. O bloco regional havia perdido vigor nos últimos
tempos, mas voltou a ganhar impulso tendo como proposta a consolidação de um
parlamento continental, instalado em Cochabamba, Bolívia, e um banco de fomento,
o Banco do Sul, com sede em Caracas.
“Trata-se de um movimento na direção de uma
cidadania sul-americana para 400 milhões de pessoas. Isso inclui direito a
passaporte único, a trabalho, a homologação de títulos universitários, e a
proteção jurídica”, destaca o professor. “Enquanto a política tiver domínio
sobre a economia, existem possibilidades de inserir aspectos que promovam a
evolução e o crescimento democrático das nações. Quando é a economia que
governa, tudo se subjuga a ela – é assim, por exemplo, com o caso dos
imigrantes, seres humanos que são coisificados e tratados como um contingente.”
http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/111/nao-e-magica-e-o-estado-hermano-8062.html”
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