Esta foi a entrevista que concedi ao portal /Ponte – Segurança Pública, Justiça e
Direitos Humanos. Eles entraram em contato comigo a partir da viralização
do mapa que coloquei aqui no blog e nas redes sociais que, embora humilde,
atingiu mais de 50 mil compartilhamentos. Segue a entrevista na íntegra:
Pesquisador em História Econômica pela Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas), Thomas Conti , 24 anos, é autor do mapa que viralizou após a onda de
ataques a nordestinos que se seguiu à reeleição de Dilma Rousseff (PT).
Diferentemente
dos gráficos tradicionais, divulgados pela grande imprensa, em que aparecem em
vermelho os estados onde Dilma venceu e em azul os Estados onde a vitória foi
de Aécio Neves (PSDB), o mapa de Conti mistura as cores, levando em
consideração não apenas a vitória dos candidatos, mas também a proporção de
votos.
Com isso,
estados como Minas Gerais, onde Dilma obteve vitória estreita, e Goiás, onde
Aécio venceu também com pequena margem de votos, aparecem praticamente da mesma
cor.
A imagem
de Conti vem sendo usada por internautas para responder os que propunham erguer
um muro entre regiões brasileiras ou para atacar moradores de estados onde
Dilma obteve mais de 50% dos votos válidos. Confira a seguir, as respostas de
Conti às questões enviadas a ele pela Ponte:
Ponte –
Por que você resolveu fazer o mapa?
Thomas
Conti – Fiquei
abismado com a quantidade de discursos públicos de ódio que surgiram após o
resultado das eleições, em geral direcionados ao povo nordestino ou aos pobres.
Embora, infelizmente, talvez existam pessoas que não mudem de opinião, imaginei
que alguns foram levados a atribuir “culpa” a esse ou aquele grupo por causa
dos mapas chapados divulgados pela imprensa, daí a ideia de apresentar o novo
mapa. Mas vale lembrar que, de toda forma, não tem qualquer fundamento falar em
“culpa”: é uma eleição e não um tribunal.
Ponte –
Por que seu mapa representa com mais precisão o resultado das eleições do que
os mapas em vermelho e azul publicados na grande imprensa?
Thomas
Conti – Essa
divisão entre estados vermelhos e estados azuis é muito utilizada nas eleições
americanas. Acontece que lá quem obtém maioria de votos em um estado obtém
todos os votos do colégio eleitoral daquela unidade da federação, tanto faz se
o outro candidato tinha 48% ou 1% do restante dos votos. Já no Brasil não é
assim, cada voto é um voto e esses percentuais do candidato que não obteve
maioria são decisivos para o resultado final.
Ponte –
Foi simples, tecnicamente, fazer seu gráfico?
Thomas
Conti – Foi
relativamente simples, sim. Levei pouco mais de uma hora para fazer o mapa
todo, e a maior parte do tempo foi dedicado a conferir os dados várias vezes
para me certificar que não havia erros.
Ponte – A
que você atribui a onda de discursos preconceitos que se seguiu às eleições?
Thomas
Conti –
Infelizmente há um ranço histórico entre as regiões do nosso País, que se
reproduz de várias formas, como, por exemplo, por piadas de mau gosto. Pode
haver também uma ignorância acerca da história brasileira, corroborada por
nosso sistema educacional carente de melhorias. Nem sempre se discute
devidamente a formação econômica do nosso País, a importância dos fluxos
migratórios entre as regiões, etc. Se o Sul e o Sudeste fossem educados sobre o
quanto devem ao povo nordestino, talvez não assistiríamos a esse show de
horrores.
Ponte –
Você costuma participar de debates públicos na internet, acredita que a rede
amplifica o potencial de discursos preconceituosos?
Thomas
Conti – Entendo
que a internet seja apenas uma ferramenta. Assim como um martelo pode ser usado
para construir uma casa ou bater em alguém, também a internet pode ser uma arma
central na luta contra os discursos de ódio ou uma forma de espalhá-los ainda
mais. Daí a importância de cada um fazer sua parte, entender a responsabilidade
de passar para a frente essa ou aquela mensagem. Uma coisa que a internet
permite é dar oportunidade para covardes exporem preconceitos que não teriam
coragem de dizer em público. Então é necessário agir de forma tal para que essas
pessoas entendam que nem ali elas têm essa liberdade de ofender, discriminar,
odiar, segregar etc.
Ponte – O
que costuma fazer ao se deparar com mensagens que considera preconceituosas em
redes como o Facebook ou o Twitter?
Thomas
Conti – Minha
tendência pessoal, tanto na internet quanto na vida cotidiana, é estar sempre
aberto ao diálogo, mas a gente apanha tanto e de tantos lados na internet que
acaba desenvolvendo imunidade a alguns discursos. Gente que escreve com raiva,
ofende, ameaça, ou cita o Olavo de Carvalho, eu simplesmente ignoro. Já se a
pessoa teve o cuidado de expor sua visão das coisas com argumentos, com calma e
sem ofensas, mesmo que eu pessoalmente considere essa visão de mundo equivocada
ou até preconceituosa, tento o diálogo.
Ponte – Acredita
que o preconceito, de uma forma geral e sobretudo o preconceito em relação a
determinadas regiões, é uma ameaça à democracia?
Thomas
Conti – Com
certeza é uma ameaça. As pessoas nem sempre entendem quão frágil é a democracia
e o tamanho do trabalho necessário para mantê-la de pé. Independentemente das
falhas que possa ter. E olha que vivemos num País cujo passado é quase um
testemunho dessa fragilidade, com a democracia sendo interrompida a cada poucas
décadas por uma ditadura.
Há tantos
exemplos importantes que mostram essa tensa trajetória entre a democracia e o
desejo de um País unido. João Goulart, por exemplo, podia ter dado o aval para
o exército do Sul marchar até Brasília para defender a democracia contra o
golpe militar, mas não quis. Afirmou que não seria ele o responsável por
dividir o País, tomar a decisão final que levaria à guerra civil. Outro exemplo
é Celso Furtado. Foi Ministro do Planejamento no governo de Jango, e
provavelmente foi também o economista que mais teorizou e defendeu a
necessidade de se desenvolver de forma equilibrada as regiões do Brasil,
reduzir suas desigualdades históricas. Foi exilado pelos militares logo no
primeiro ano do golpe.
A
ditadura foi um grande retrocesso para nossa conscientização democrática e de
unidade nacional inclusiva, exilou figuras importantes, promoveu o extermínio
de índios e foi sob os governos militares que se promoveu a urbanização mais
rápida e caótica da história, responsável por inflar nossas periferias urbanas
a uma taxa mais rápida do que seria possível construir qualquer infraestrutura
mínima . Um feito tão terrível que valeu até uma menção do historiador
britânico Eric Hobsbawm na Era dos Extremos.
Enfim,
manter o País unido, democrático e num ambiente de respeito aos direitos
humanos fundamentais que aponte para a igualdade é um desafio gigantesco. O
preconceito e o ódio podem levar ou não à legitimação de um movimento
separatista, mas, independentemente disso, com toda a certeza, apontam no
caminho oposto ao que seria necessário para responder a esse desafio.
Ponte –
Que tipo de medidas acredita que as gestões que se iniciam, tanto a nova gestão
Dilma como as gestões estaduais, devam tomar para evitar esse tipo de
discriminação entre regiões?
Thomas
Conti – Tanto a
presidenta Dilma quanto o senador Aécio Neves tiveram um papel importante nesse
sentido da união do País em seus discursos no domingo, logo após o resultado
das urnas. Acredito que, agora, as principais medidas devam vir da própria
população, pois na verdade nessa questão regional temos sorte de pelo menos os
grandes representantes de nossos partidos maiores não reproduzirem certos
discursos retrógrados que parte das suas bases de apoio possam ter. Mas, mesmo
assim, o clima pode esquentar com relativa rapidez nas ruas, no ambiente de
trabalho, etc. A medida essencial que todos os partidos responsáveis deveriam
tomar é deixar claro para a população que isso deve ser combatido, que não tem
respaldo nem legitimidade.
Ponte –
Você estuda guerras do século 19. O preconceito aparece como fator que
contribui para desencadear conflitos?
Thomas
Conti – São
raríssimos os exemplos de guerras modernas que ocorreram sem necessitar também
uma forte campanha propagandística de ódio e preconceito ao “outro”. O exemplo
clássico que qualquer um pensaria hoje é a cruzada americana contra os países
do Oriente Médio, mas é possível recontar a relação do ódio com a guerra
começando vários séculos atrás.
Ponte –
Isso ocorre também nas revoltas separatistas que o Brasil viveu no século 19?
Thomas
Conti – Minha
ênfase é nas guerras internacionais, então não sei se tenho base suficiente
para falar sobre os movimentos separatistas brasileiros. Mas o ódio não precisa
necessariamente levar ao separatismo regional e, como em quase tudo, a história
brasileira quase sempre é exceção: a escravidão ainda é lida como um dos
principais fatores que garantiram a unidade nacional durante o Brasil Império.
Nossas elites regionais uniram suas forças para garantir o tráfico de escravos
e os latifúndios até o último minuto, quando os abolicionistas já estavam
ganhando a batalha cultural e moral nas ruas. Esse ódio aos negros que
legitimava a escravidão, assim como a união das elites contra os negros, gerou
cicatrizes: elas estão nas periferias urbanas, nas casas com uma ou mais
empregadas para fazer serviços cotidiano, no medo e ódio aos pobres e negros.
Ponte –
Como isso se manifesta hoje?
Thomas
Conti –
Desnecessário dizer que não há nada menos democrático do que a escravidão. O
escravo era uma propriedade do seu senhor, desprovido de liberdade, um “ativo”
no sentido econômico do termo. Até hoje muitos ainda olham para os pobres dessa
forma: diferentemente de um ser humano, que possui direitos fundamentais e é em
si portador de dignidade e liberdade. Um “ativo” só é digno de valor se tiver
alguma utilidade econômica para o seu proprietário. Um exemplo disso hoje: mais
de uma pessoa comentou no meu mapa ou me enviou por mensagem que quem recebe
Bolsa Família não deveria ter direito a voto. À primeira vista, é só um
discurso ignorante e senil, mas por trás desse pensamento tacanho a pessoa nem
se dá conta de que está reproduzindo quase literalmente a história da
segregação social brasileira.
Ponte –
Acredita que esse preconceito contra determinadas regiões do País, que emergiu após
a reeleição de Dilma, também se manifeste, em escala menor, nas metrópoles?
Thomas
Conti – As
grandes metrópoles brasileiras acentuam todas as formas de preconceito, ao
reproduzirem na estrutura da cidade o padrão centro-periferia: um centro
pequeno, rico e concentrador das oportunidades de emprego, com uma vasta e
distante periferia urbana, pobre e com pouquíssima geração local de empregos.
Em São Paulo, se não me engano a relação é 85-15: 85% dos empregos no centro da
cidade contra 15% na periferia, e apenas 15% da população da cidade residindo
no centro contra 85% que residem nas periferias.
Ponte –
Essa relação influencia a atuação diferenciada das polícias em regiões
periféricas e em regiões centrais, tanto na abordagem como no esforço de
investigação?
Thomas
Conti – Isso tem
reflexo sim nas formas de manifestação do preconceito, do racismo e a atuação
da Polícia Militar. Com uma população tão segregada física, cultural e
economicamente, a polícia tem um grau de liberdade muito maior para atuar de forma
distinta nas suas atividades. Por exemplo, podem já de partida pressupor que um
negro ou pobre não terá condições de acionar um advogado caso seja abordado,
podem partir do pressuposto da culpa e, como as estatísticas do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais infelizmente revelam, só a Polícia Militar do
Estado de São Paulo mata mais por ano do que todas as polícias dos EUA somadas.
E os Estados Unidos já são amplamente criticados por terem uma das polícias
mais sanguinárias do mundo e por ter estados onde há pena de morte.
Ponte –
Surpreendeu-se com a repercussão de seu mapa?
Thomas
Conti – Com
certeza fiquei muito surpreso! A linguagem e a imagem que utilizei tinham de
fato a intenção de veicularem informações de forma rápida e fácil de ser absorvida.
Pensei no mapa justamente para facilitar a divulgação. Mas daí para acontecer
isso, ser compartilhada por mais de 45 mil pessoas, fora as notícias de outros
portais de notícias que replicaram a imagem e meu texto, foi um passo bem maior
do que poderia sequer imaginar.
Ponte –
Sofreu ameaças após seu gráfico viralizar?
Thomas
Conti –
Infelizmente sofri algumas ameaças. As coisas básicas da internet: morte,
perseguição, espancamento, etc. Mas mantenho um blog há um ano e meio e sei o
quanto as pessoas conseguem ser irracionais e covardes na internet. Nenhuma
dessas mensagens veio de gente minimamente próxima de mim ou meus círculos
pessoais. De toda forma, para nós que tentamos defender a causa dos direitos
humanos neste País, não deixa de ser preocupante. Se colorir um mapa do Brasil
e fazer um pequeno manifesto contra discursos de ódio (que já são crime pela
nossa Constituição de 1988, artigo 5) foi o suficiente para gerar reações desse
tipo, fico preocupado com para onde nossa sociedade está caminhando.
Ponte –
As ameaças cessaram ou continuam?
Thomas
Conti –
Cessaram, ainda bem. Quase todas que recebi foram antes de o mapa passar dos 5
mil compartilhamentos. Gosto de pensar que talvez as pessoas tenham se tocado
que a pauta é séria e tem amplo apoio da sociedade. E, por isso pararam. Mas
reconheço a grande dose de otimismo necessária para encarar dessa forma.
Ponte –
Você costuma fazer análises econômicas em seu blog. Em relação à economia e ao
desenvolvimento do País, quais são, na sua opinião, os principais desafios da
nova gestão Dilma?
Thomas
Conti – Nossa,
são inúmeros. Escrevi um artigo no meu blog sobre isso, recomendo para quem
quiser detalhes olhar lá. Mas, se tivesse que eleger um desafio econômico como
o central, diria que será a manutenção do nível de emprego. A presidenta fez
esse compromisso progressista com a população e torço para que de fato consiga
mantê-lo, mas, como economista, devo reconhecer que não será nada fácil, será
uma briga árdua tanto técnica quanto politicamente. O saldo em transações
correntes brasileiro não vai bem, os preços dos principais produtos exportados
pelo país estão em queda, e para piorar existe a possibilidade de uma nova
crise na Europa. Isso tem efeitos adversos sobre o câmbio, que caso se
desvalorize demais impactará também a inflação e o desempenho do mercado
interno. Mas essa é uma discussão longa, que nesse momento tenho certeza que
não está sendo feita com grande preocupação só aqui, mas também no Planalto.